terça-feira, 29 de abril de 2008

CAMAROTE DE LUXO COM ACOMODAÇÃO PARA DOIS

Para João Wernek

--Você já pensou em se matar?--Eu não preciso. Estou velho demais para isso.Beirando os oitenta anos de idade, Wernek era meu companheiro nas madrugadas da Jovem Pan. Lá de cima, do alto da Paulista, ficávamos, os dois, contemplando a cidade estendida como grãos luminosos lá em baixo. --Você já percebeu que daqui não se vê diferenças entre ricos e pobres, brancos e negros, gordos e magros?Todos sonham sonhos muito iguais. Com certeza, sonhos muito antigos.
A partir daí, passávamos a um longo e interminável discurso sobre velhos sonhos. “O quê você gostaria de ter feito e não fez?

Wernek virou luz cedo demais.Deixou duas coleções e uma indignação.Para a filha, CDs italianos de raríssimos barrocos.Para a sociedade, um fusca branco que comprou, de má vontade, com aval obrigatório da filha, porque tinha mais de setenta anos. Levou para as estrelas mais esse sapo.Finalmente, para mim, deixou um imenso baú de ossos da juventude dos jornalistas paulistas.Com a permissão do amigo, sirvo-me desse banquete todos os dias.É por essa ótica que vejo filmes, leio livros, ouço conversas dentro do ônibus.É tarde demais, pra mim e pro Wernek: já não discutimos os conteúdos ideológicos.Não gosto do Bandeiras que realizou o sonho da minha geração: casar-se com Melanie Griffitt. Pior: batia nela.

Meu lado Wernek, esse eterno nostálgico, voltou em espírito para dois ou três lugares da cidade. Alí, na avenida Rio Branco, ficava o Avenida Danças.E, aqui, faço uma pausa. Cheio de delícias como os sundaes da infância.No Avenida, juntava-se a fome com a vontade comer: rapazes engomados, nos seus ternos riscas-de–giz, das lojas Garbo e mocinhas com cetins baratos e cabeças ocas.Jovens operárias que aumentavam o ganho mensal, deixando-se levar nos braços (e pernas) de bailarinos insipientes.Havia sonho, muito hormônio e um rígido respeito às regras.

Eram nesses salões apinhados que a maior parte dos rapazes, quase todos estudantes, sentiam, pela primeira vez, o corpo de uma mulher.Os sentidos emanavam do coração. Fosse quem fosse a garota era linda como Audrey Hepbourne, roliça como Kim Novak e perfumadas como todas as princesas deveriam ser. No salão, nunca à meia-luz, os rostos se colavam, as têmporas explodiam e as mãos gotejavam de suor.

Quase ao amanhecer e antes do sono profundo nas pensões honestas dos Campos Elísios e de Santa Cecília, os rapazes davam uma passadinha no Salada Paulista da Praça da República ou no Ponto Chic do Largo do Paissandú. E, alí mesmo, nos gardanapos de papel, nasciam quadrinhas piegas para cantar o amor:Eu vi o rio passando, quando tu fostes banhar/Chorava o rio de tristeza/Por não poder te levar.Dois ou três dias depois, esses guardanapos rabiscados, acabavam entrando pelas Arcadas de São Francisco e se tornaram um imenso cancioneiro, na voz da estudantada.

No Viva Maria, Pedrinho Mattar dedilhava com excesso de floreios as canções que Carmen Cavallaro acabara de gravar.Aquele, na Cesário Motta, era território sagrado da moçada da Santa Casa.Os mais românticos compravam rosas vermelhas, ainda com o sereno da madrugada, na banca de flores do Dodô, no Largo de Arouche.Por que você pensa em se matar se há tanta vida passando lá fora?Wernek nunca parecia filosofar. Mas eu via, nos seus olhos cansados que, mesmo nas madrugadas impiedosas e cruéis, ainda é possível cogitar, como Juca Chaves, com quem sonham as Anas Marias.E aí, com o coração cheio de tristeza, chegava a ouvir o som dos alaúdes barrocos. Razão da vida do velho Jornalista.

De mim, fica faltando a história dos bailes de debutante dos clubes Pinheiros, Paulistano e Harmonia. Um mundo de pompa e circunstância que acontecia pelo menos uma vez por ano. Fica faltando também as festas baquianas na Cave da rua da Consolação e o leilão de chacretes entre os alunos de Direito do Mackenzie, com direito a suite presidencial no Eldorado e almoço regado a champanha. E, as desventuras de um gênio das artes visuais que, no escurinho da boate Berimbau, ao som de Luiz Carlos Paraná, se deixou enroscar pelas coxas roliças e fáceis de uma linda agente do SNI e foi acordar numa cela do presídio do Hipódromo.

Roberto Dupré, abril de 2008.