terça-feira, 10 de junho de 2008

MAMUTE ESCADA ABAIXO


Não gosto disso, mas vou começar com uma pergunta: pode alguém ter memórias recorrentes de uma outra pessoa? Para mim, elas surgem como num filme.

Cena 1 - Sábado de sol, a confeitaria e Padaria Redentor anuncia, em néon vermelho, sonhos, recheados de creme, Ali, esparramada diante do pequeno largo de N.S. da Conceição, no fundo do Cambuci, os freqüentadores da padaria não suspeitam que, naquele mesmo lugar, em 1924, havia apenas a cratera de uma bomba. Um cortiço de operários italianos fora destruído, junto com os bairros da Moóca, Brás e Pari, onde vivia grande parte dos imigrantes europeus em São Paulo.
Cena 2 – É a tomada inicial do Novecento, de Bertolucci. Aquelas mulheres camponesas num nostálgico contra-luz, caminhando lentamente da esquerda para a direita. Ao fundo, ruídos de batalha mesclados à Internacional Socialista, sussurrada à capela por Renato Brás. Quase um século separa as duas coisas. A abertura do filme e sua trilha sonora são delírios distintos. Mas, é assim mesmo que a coisa acontece. O general Isidoro Dias Lopes lidera o segundo levante contra o governo da aristocracia que está no poder desde a proclamação da República. São Paulo, Mato Grosso e Rio Grande do Sul aderem. Hermes cai. Sobe seu vice,o escravocrata mineiro Arthur Bernardes.
Cena 3 - Durante vinte e dois dias, bombas de alto poder de destruição cuspiram fogo sobre os bairros operários onde moravam centenas de milhares de imigrantes pobres, a maioria comunista ou anarquista. As bombas arrasa-quarteirão eram tão potentes que foram proibidas pela Convenção de Haia, depois da Primeira Guerra Mundial. Arthur Bernardes não quis saber de história e ordenou o bombardeio. 894 residências foram destruídas e mais de mil imigrantes morreram. Segundo o Presidente em exercício, uma limpeza necessária.
Cena 4 – Na sala de reunião do Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, não se fala em outra coisa senão a expansão da Revolução Bolchevique. Os tenentes insuflados por alguns intelectuais iniciam seu movimento baseado no Socialismo Utópico de Phroudon. Isso não cheira bem. A doença infantil do socialismo. Lênin. Enquanto Bernardes tem pesadelos com o Lumpem Proletariado, um líder anarquista resume, o que acha de tudo aquilo: sonhadores idiotas. Bernardes e os tenentes.
Cena 5- Nenhum operário da Moóca ou do Brás segue o general Isidoro ou se deixa levar pelos discursos inflamados do tenente Miguel Costa, que viria a ser, no ano seguinte, o sub-comandante da Coluna Prestes. O operariado só morre.
Cena 6 - Na frente da casa de Maria na rua da Moóca, foi aberta uma trincheira que ia de calçada a calçada. Há um magnífico filme francês, O Amor Eterno, que revela todo horror de uma trincheira. Lama recoberta de merda e urina. Só. A comida, umas latinhas muito esquisitas que não tinham gosto. Em pouco tempo, a filha de camponeses da região de Ferrara, comprimida entre Veneza e a Emília-Romana, produtora de ótimos vinhos e aristocratas cruéis, Maria já costurava as meias de lã para quase uma centena de soldados. Logo depois, encheu a primeira marmita com uma macarronada à bolonhesa, sobra do almoço de domingo. Em vez de água da moringa colocou vinho doce de São Roque nos cantis. Assim, eles ficam com menos medo e sentem menos frio. Cada morto ou ferido da trincheira leva Maria às lágrimas, como se fossem parentes. Quando há silêncio, Maria desafia o pai anarquista e aumenta o volume do rádio bem no momento em que Gigli canta Musica Proibitta, cujo refrão, repetido à exaustão, fala de lindos cabelos negros, soltos sobre os ombros. Como os dela. Até hoje, quando passo pela rua da Mooca, vejo o rosto daqueles soldados-meninos, apavorados, insones debaixo dos bombardeios, sorvendo, em goles lentos, a bebida vermelha que os brasiliani acham que é vinho. E gostoso. Fico imaginando como a figura maliciosa de Maria, ensolarava a tropa nas madrugadas frias e garoentas daquele inverno de 24.
Cena 7 –Anos depois, Maria me conta a história da resistência dos milaneses à tirania do exército Austro-Húngaro. Os italianos estavam de joelhos, da mesma forma como os escravos judeus de Nabucodonosor. O Scala, lotado de oficiais invasores e trabalhadores milaneses. De repente, no terceiro ato, ao som do coro dos escravos, os italianos tomados de fúria, como na metáfora das Bacantes, de Eurípides, atacam os estrangeiros. Dali partem para as ruas e naquela mesma noite, põem os inimigos a correr. Nem sempre se vence uma batalha com canhões. Se você pedir a um italiano para cantarolar o hino de seu país, a primeira frase será, inevitavelmente, Va Pensiero. Que não é o hino oficial, mas a ópera Nabucodonosor. Minha cabeça viaja e sou tomado pelo mesmo ímpeto que se tem ao final de uma luta de boxe. Consigo imaginar a revolução se espalhando pelas ruas do meu cérebro ferido. Como as ruas de Ítalo Calvino. Multifacetadas. Mutantes. Acho, até, que Maria, a jovem filha de anarquistas, acreditava no ardor revolucionário das canções italianas. Como Verdi.
Cena 8 - Anos depois, ela me leva ao Municipal de São Paulo, com th, na praça Ramos, para assistir ao Nabuco. Até hoje, o coro dos escravos, me comove às lágrimas. Maria tinha essa magia. Todas as tardes, num pequeno rádio RCA azul-metálico, que vivia sintonizado na rádio São Paulo, ela ouvia novelas ou, na Gazeta, óperas. Eu recostava em seu ombro enquanto ela narrava o libreto de cada ato de Aída ou me mostrava a diferença entre uma soprano e uma contralto. Essa São Paulo morreu com ela, há mais de trinta anos, quando minha avó fechou os olhos. Jamais haverá cidade como aquela. Só na memória revisitada interminantemente por ruas calçadas de sons de vozes e uma poeira de saudade do nunca-visto. Por isso e sempre, te saúdo. Baccio, nonna.

PÁTRIA MINHA
Michail Dedalus

Exilem todos os monarcas, Apaguem todas as fronteiras, Baixem todas as bandeiras, Rasguem todos os passaportes,
Queimem todos os mapas, Esmaguem todas as bússolas, Esqueçam todas as rotas,
Demolam todas as pontes. Lavrem todos os caminhos, Afundem todas as armadas, Desmembrem todos os aviões, Desmobilizem todos os exércitos,
Suprimam a noção de espaço, Declarem a abolição do tempo. Pois encontrei a pátria interior.


Nunca descobri quem é Dedalus, apesar do poema lindo. Maria costumava contar coisas de seu paese, com tal riqueza de detalhes, que eu conseguia sentir o cheiro do manjericão e o perfume carneiro assando. Maria falava um italiano explêndido. E, sempre dizia: ritornare a Ferrara, doppo morrire. Foi só na cerimônia fúnebre dela, com tanata burocracia, que descobri o impensável: minha avó Maria jamais conheceu Ferrara. Nasceu noi Brasil, dez anos depois que os pais chegaram


Roberto Dupré. Outubro de 2007.

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