quarta-feira, 11 de junho de 2008

O TRECO


Lá em casa, a gente o conhece por Treco. Toda vez que o jornalista Jaime Martins – 27 anos como correspondente de “O Estadão” em Pequim, me encontra, exclama: ué! Ainda vivo? A Coisa não te pegou? Depois de tanto tempo, Jaime adquiriu o cirúrgico olhar chinês. Seja o que for, Treco, Coisa, Bicho, ele é cruel e agressivo.
Muito conhecido, mas sem face, inicialmente descrito pelo jovem tenente-médico irlandês, Ira Mcguiness, no auge da Primeira Guerra mundial. Ele observou que vários soldados, imediatamente após os longos bombardeios, costumavam ter acessos de desmedida euforia: e incontrolável bravura: pulavam para fora das trincheiras e ficavam brincando em meio ao fogo cruzado, gargalhando. Outros, urinavam de pé enquanto as balas zuniam para todos os lados.
Nunca dei importância ao Treco até o dia em que ele me pegou. Sim, não somos nós que pegamos o Treco, é ele quem nos pega. Você acorda e percebe que continua vivo. Você olha para dentro e não consegue distinguir os próprios sentimentos. A sensação não é de medo. Tudo que você quer é fugir de terrível estranhamento. O comportamento passa a ficar absolutamente insuportável. Mas não a ponto de você ser incluído em alguma categoria nosológica, Enfim, ninguém sabe o que é o Treco, nem como tratá-lo. Só se sabe que ele causa danos irreparáveis, O Treco é, antes de tudo, um brincalhão. Transforma amor em ódio. Segurança, em pânico e faz das pessoas atores estressados à procura de um palco. Algum dia na vida, você experimentará o Treco. Desculpa, O Treco é quem experimentará você. E, mesmo se, num gesto extremado você resolver escapar, ainda assim, se espatifará na calçada atrapalhando o tráfego.
Minha mulher, psicóloga arguta, comentou, enquanto lia para mim (perdi uma parte da visão) o Jaguadarte: ih! vou ter um Treco! Em lesmolisas touvas. A boa e velha Teresa, nascida e criada na aridez do Jequitinhonha, se afastou e suspirou um audível vige e fez três vezes o sinal da cruz, achando que o almoço de feijão de corda ia acabar em briga do casal. O Treco é o treco.
Pela sua explosiva carga de irritabilidade social, o Treco é muito contagioso. No dia dos pais, comentei “Nossa, querida, a comida está ótima. Ao que ela respondeu: claro! Alguma vez, você comeu merda nesta casa?”
Diante daquele merda, sibilado entre os dentes, Zig, o espertísimo basset do meu neto, correu para o quarto e se escondeu debaixo da cama.
Há muitas histórias fantásticas sobre o Treco. Nem sempre exclusivamente humanas. Num sábado quente do último verão, levei o Zig pra passear. No meio do quarteirão, percebi um pitbull mal encarado vindo em sentido contrário. Zig uivou fazendo esgares horríveis com a boca. O pitbull, prudentemente, atravessou a rua. Roberto Dupré – agosto de 2007

Um comentário:

ANIZ TADEU disse...

Dupret, o Kanji me falou de seu blog e eu resolvi dar uma passeada por ele. Comecei pelo Treco e não consegui parar de ler esse Treco. Acho que ele quis me experimentar enquanto o lia. Cara, muito boa essa crônica. A partir dela começamos a pensar em quantas vezes fomos atingidos pelo treco no decorrer de nossa infame existência.
Bom, depois leio os outros texto que, com certeza, devem ser tão bons quanto O Treco.
Se puder, entre em meu Blog: aniztadeu.blogspot.com
Eu também escrevo e sou artista plástico. Nó já nos conhecemos de algum aniversário do Kanji.

Um grande abraço,
Aniz Tadeu