terça-feira, 10 de junho de 2008

OUTRAS FORMAS DE BOM TEMPO


Um fim de noite, uma repórter de pernas bem torneadas e neurônios minúsculos, perguntou ao poetinha, já no centésimo uísque: você não tem medo de morrer? Em meio ao constrangimento geral, Vinícius abriu um imenso sorriso: não, minha filha: o que eu tenho é saudades da vida...
Essa história de fluxo de consciência me leva aos confins da pré-história. Não tenho nenhuma predileção particular pela cantora irlandesa Ênya. Ela só chegou na minha vida no fim dos anos oitentas.O resto todo foi construído às custas de doces lembranças sonoras de Maysa, Dolores Duran, Silvinha Telles. E caminhões e caminhões de tulipas de chopp, muita gargalhada e muito choro.João Sebastião Bar.
Quando bate a nostalgia, eu e minha mulher, que tem um pezinho na Dinamarca, nos sentamos no chão e mergulhamos em antiqüíssimos vinís, numa jurássica vitrola Technics, do tempo do onça. E, fazemos, juntos, uma longa viagem ao passado. Bergson dizia que o passado nada mais é que o futuro de visto de frente para trás.
Acabamos de carimbar nosso passaporte. E, de mãos dadas, voltamos da névoa de outros tempos.
Vendo, agora, percebo o privilégio da minha existência. Mais do que fatos, a vida deste pobre jornalista, é um imenso universo de sons. Venho de um mundo que acontecia sob o palco do atual Teatro de Cultura Artística, sede da extinta TV Excelsior. Dali,fui para a não menos extinta e não menos saudosa TV Tupi. Era, então, um mundinho que vivia em torno da Biblioteca Mário de Andrade. Ou, mais precisamente, da Galeria Metrópole. Num raio de menos de quinhentos metros, estavam o melhor e o pior da cidade: Ignácio Loyola de Brandão, a redação de O Estadão, a redação de O Diário da Noite, da Gazeta Mercantil e o terrível Lepiani de cuja janela, se podia ver a majestade dos livros da Biblioteca Municipal e de cujo telefone, vinham as ordens para silenciar esse ou aquele assunto. Ex- comandante do capitão Lamarca, a insubordinação daquele sobrou para os ombros do velho coronel de cabelos curtos e brancos e olhos injetados. Lepiani nunca chegou ao generalato. Mas, graças à eficiência dele nas chefia do SNI em São Paulo e, particularmente da Censura Federal, passou a receber soldo equivalente ao do comandante do II Exército.
A Galeria Metrópole era uma festa diuturna, com muita vodca, sauers excelentes e caipirinhas nem tanto. O clima de 1968 era o pior possível fora dali, o que me custou e ao comentarista político José Carlos Bittencourt, várias explicações ao coronel Lepiani. Loucos que éramos, fazíamos na rede Bandeirantes de televisão um programa que dava voz a dois dos mais detestados inimigos do regime: Ulisses Guimarães e Franco Montoro.
Só hoje percebo que nunca saíamos das redondezas. O mais longe que íamos era o Diana Caçadora, na rua Marquês de Itu, onde tomávamos porres homéricos, acompanhados de fartas bistecas mal passadas. Todos os jornalistas e todas as putas do pedaço. Eventualmente, alguns poetas; mais eventualmente, ainda, o frei Beto.
É inacreditável ter sobrevivido a tudo isso.
Quase na esquina da Ipiranga com a São João, ficava o bar da Brahma. Onde a cantora Cláudia enternecia o mundo chumbo- outonal de então, com a Primavera de Carlinhos Lyra.

O meu amor sozinho
É assim como um jardim sem flor
Só queria poder ir dizer a ela
Como é triste se sentir saudade
É que eu gosto tanto dela
Que é capaz dela gostar de mim
E acontece que eu estou mais longe dela
Que da estrela a reluzir na tarde
Estrela, eu lhe diria
Desce à terra o amor existe
E a poesia só espera ver
Nascer a primavera
Para não morrer.
Não há amor sozinho
É juntinho que ele fica bom
E eu queria é dar-lhe todo meu carinho
Eu queria ter felicidade
É que o meu amor é tanto
È um encanto que não tem mais fim
E, no entanto, ela nem sabe que isso existe
E é tão triste se sentir saudade
Amor eu lhe direi
Amor que eu tanto procurei
Ai, quem me dera eu pudesse ser
A tua primavera
E depois morrer.

Anos depois, Claudinha virou Eva Perón, no musical Evita. E, só então, se tornou conhecida.
Um dia, saí daquele universo de boemia para ir salvar a Pátria das mãos do Tirano. Levei a maior e mais definitiva surra da minha vida.V
O que eu tenho, minha filha, é saudade da vida...
Roberto Dupré, setembro de 2007

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