quarta-feira, 11 de junho de 2008

O INSTANTE QUE ANTECEDE O BEIJO


Agora que todos conhecem, medianamente, o Treco, posso, enfim, revelar a história do soturno paciente do leito 5 da enfermaria B.
Em algum lugar do planeta, ele deve ter uma carteira de identidade, de motorista ou coisa que o valha. Neste momento nada disso importa. O que interessa focar é o vasto mundo por trás daquele par de olhos negros como pitanga onde apenas se vê o reflexo da tela da tevê.
Nada há, senão um imenso vazio, compartilhado com uma extraordinária memória de cheiros, sabores e, principalmente afetos.
É fantástica a maneira como um reflexo de tevê adquire propriedades quase físicas. Tudo que ele precisa, está lá: beleza, doçura e a sensação de pertencer a algum lugar; nada impede apaixonar-se pela magérrima moça do tempo do meio-dia ou pela curvilínea moça do tempo da meia-noite.
A porta se abriu e a enfermeira entrou com uma bandejinha, garrote e seringa. Antes mesmo que o Rivotril fizesse efeito, a linda mocinha da série americana que ele nunca perdia, beijou, sofregamente na boca, o mocinho. Beijo de língua. Quando, na juventude ele freqüentava os bordéis, as prostitutas faziam de tudo, menos beijar na boca. Por isso, beijo de língua, para ele, deveria ser mais importante que o sexo em si.
O beijo da mocinha que ele amava, na boca do mocinho que ele odiava, foi uma punhalada. Por isso, nem mesmo a dose cavalar de tranquilizante, impediu uma sucessão de pesadelos, cujo tema central era a traição e o abandono,
Quando a angústia chegou ao limite mais explosivo, ele sentiu o calor de uma mão delicada sobre a sua mão ainda fria.
Abriu os olhos, atordoado e Audrey Hepburn sorriu um imenso sorriso de amor.
Então, sentiu-se em casa, na própria cama, virou de lado, relaxou e dormiu.
Roberto Dupré. Agosto 2007.

Um comentário:

Blog da Bruna disse...

Meu caro Robero, mais uma estou tentando registrar meu comentário em seu blog. Não será comentário exatamente sobre o texto em si, mas sobre você como autor, colega de classe e especialmente ser humano. Sua experiência de vida e até suas limitações féisicas são inspiração para muita gente: aqueles que tem medo de se revelarem, os que se subestimam na capacidade criativa, os preguiçosos, e especialmente pessoas como esta amiga sua aqui: não somete tenho a impresão de conhecer voce desde sempre, mas o enriquecimento que recebo de você criou em mi a sensação de que muitas de mionhas tragedias e algumas das suas, nos passamos e superamos juntos. Em tudo isto incluo a admiração por aquela pessoa muito especial que é a Ana que mesmo sem conhecê-la a fundo revelou-se a mim atraves de voce. Abraços carinhosos aos dois.Bruna